O Anjo (Fragmentos de Prosa Poética)

       O Anjo abriu suas asas e voou por sobre o círculo de terra e areia. Sentado na arquibancada do circo, sob seu toldo colorido, Luciano contemplou a cena ao lado de seu filho. Apenas uma luz iluminava o centro do picadeiro. Lá em cima, o Anjo pairava. Suas asas ruflavam silenciosamente. "--- Jamais chegarei até ele", pensou Luciano consigo mesmo, observando atentamente a figura luminosa a flutuar. "---- Por mais que eu tente ---- e Deus sabe que tenho tentado ---- nunca poderei chegar-lhe perto", lamentou Luciano, quase que com um gemido.

       Luciano e seu filho, sentados assim, juntos, pareciam-se em muito. Fisicamente, um era a versão mais nova do outro. Altos, magros e altivos, acentuavam a semelhança trajando jeans, tênis e camiseta. A calvície incipiente de um sublinhava a do outro como um contraponto visual. A similitude era óbvia mesmo ao observador mais desatento. Internamente, porem, Luciano havia perdido há muito os sonhos que ainda faiscavam como brasas no fundo dos olhos do jovem. A morte já havia olhado Luciano de frente uma vez e seu halo gelado havia-lhe contaminado a alma. Ao contrário do filho, Luciano havia aprendido que era mortal.

       O Anjo mergulhou em um vôo rasante e soltou guincho. Pássaro assombrado, ele voejou sob a luz do holofote. Luciano estremeceu. Ao mesmo tempo em que ansiava unir-se ao Anjo, temia esta possibilidade. Um secreto terror consumia-lhe por dentro. Ele sabia que a hipotética união com a figura alada ser-lhe-ia o fim. A conjunção do Homem com o Anjo aniquila-lo-ía.

       Havendo chegado aos cinqüenta, Luciano ansiava por mudanças. Ele já não mais se conformava com o presente roteiro em que sua vida havia-se tornado. Repeti-lo diariamente tornara-se um fardo. Contudo, sua existência era tranqüila e relativamente segura. Como trocar o certo pelo duvidoso? Como reformar-se por dentro e ser uma pessoa totalmente nova? A possibilidade de um salto rumo ao desconhecido aterrorizava-lhe. A inércia do presente consumia-lhe o futuro. Suas opções eram poucas. Após os quarenta, num país tão jovem como o Brasil, Luciano já era um velho. Somente com muita dificuldade é que conseguiria recolocar-se para algum outro lugar. Faltavam-lhe os contatos. Faltavam-lhe os padrinhos. Faltava, também, a vontade de mudar-se daqui; começar vida nova em outro lugar, com todos os riscos e desapontamentos que isto seguramente acarretaria. Melhor conservar o que tinha, ainda que isso corroesse-lhe a alma.

       O Anjo, agora silencioso, havia pousado em uma travessa no alto do picadeiro. Soturna figura na penumbra, concentrava-se em afagar as penas, alvas e brilhantes, de suas imensas asas. Alheio às pessoas lá embaixo, prosseguia em sua rotina há muito automatizada. Esperava, alheio e resignado, o dia em que a porta da gaiola se abrisse. Jamais havia-lhe ocorrido furar a cobertura de lona e escapar.
 

Uriel da Mata
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